(Em Honra das “Conceições” que rompem o Silêncio)
Não do granito ou do bronze se faz este monumento,
Mas da matéria frágil e eterna da memória,
Da coragem que arranca, com o próprio sofrimento,
A erva daninha do segredo e da falsa glória.
Falas de uma criança que a inocência lhe foi roubada,
Em um tempo de véus, de silêncios cúmplices e pesados,
Onde a culpa, à rédea solta, andava disfarçada
Em temores rezados, em dogmas mal-usados.
Mas da semente podre, enterrada na escuridão,
Brota, por fim, um caule de luz, tortuoso e santo,
É a voz que se liberta da própria perdição,
É a lança que transpassa o mais espesso manto.
Aos catorze anos, a consciência, ferida bruta,
Um desgosto de morte, um abismo por dentro.
A alma, uma paisagem absoluta e dissoluta,
Onde até Deus parece ter-se ausentado no centro.
Mas eis o acto sagrado, o milagre mais puro:
Não a revolta estéril que consome e queixa,
Mas a paz que se tece sobre o antigo muro,
O perdão que não absolve, mas que liberta e deixa.
A dor não parte, faz-se cicatriz, geografia,
Mapa de um naufrágio que a alma sobreviveu.
Já não é ferida aberta, é sabedoria,
É o preço que se pagou por ser Luz que nasceu.
E assim, Conceição, tua voz, suave e forte,
É o hino das almas que quebraram a algema.
Não cantas a dor, cantas a sorte
De teres encontrado, em ti, o supremo sistema.
Cada testemunho é um raio a rasgar a noite,
É um “não” que ecoa nos porões da humanidade.
É a recusa da corrente, o fim do aperto,
É a fé verdadeira: na própria dignidade.
Por isso, esta poesia é uma vela acesa,
Em honra da criança ferida, da adulta sábia.
A tua libertação é uma nobre empresa
Um canto de guerra contra a mais torpe mentira.
Hoje, não és a que calou. És a que fala.
E ao falares, quebras os ferrolhos do medo preso.
A tua luz, sobre a podridão, se aviva e se iguala
À coragem dos santos, dos justos, dos verdadeiros íntegros.
E nada, jamais, apagará esta chama.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo